Encerrando o mês, o CRESS Entrevista Ilena Barros sobre o Dia do Estatuto da Terra, celebrado neste 30 de novembro. A data marca a criação da lei brasileira sobre a questão agrária, que regulamenta os direitos e obrigações dos imóveis rurais visando executar a reforma e cuidar da política agrícola.
Ilena Barros é docente do curso de Serviço Social da UFRN, assistente social e Doutora em Serviço Social pela UFPE. Foi coordenadora pedagógica do curso de Licenciatura em Ciências Sociais pelo PRONERA, parceria UFRN/INCRA/MST, entre 2014 e 2019 e integra a Rede de Educadores Populares do Nordeste. É associada da Escola de Formação Quilombo dos Palmares e feminista atuando no Coletivo Leila Diniz e na Articulação de Mulheres Brasileiras.
Durante a entrevista, a pesquisadora e militante fala sobre como começou a sua trajetória com a temática, os desafios da reforma agrária no Brasil, sobretudo em tempos de pandemia, e a relação do Serviço Social com a questão. “As pesquisas que vêm sendo realizadas no âmbito da formação profissional sobre Serviço Social e Questão Agrária têm sido fundamentais para superar a fragmentação do conhecimento e a dicotomia urbana e rural na análise da realidade brasileira”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra
CR: Como você avalia a questão agrária no Brasil e no estado ao longo dos últimos anos?
IB: No campo brasileiro, há dois projetos em disputa. O primeiro é o agronegócio representado pela produção agrícola monocultora e agropecuária; energia eólica; mineração; energia solar e o hidronegócio (expresso nos grandes empreendimentos energéticos e hídricos).
São empresas transnacionais de produção de commodities: produtos de origem mineral ou vegetal, geralmente em estado bruto ou com pouco beneficiamento, produzidos em massa e com características homogêneas, independente de sua origem. Seu preço, normalmente, é definido pela demanda, e não pelo produtor. Alguns exemplos de commodities são soja, café, açúcar, ferro e alumínio.
Essas empresas possuem o domínio da produção agrícola, do comércio, dos insumos, das máquinas, dos medicamentos, dos agrotóxicos, das sementes, das ferramentas; ou seja, controle total da cadeia da produção e da comercialização dos produtos agrícolas, em escala mundial. Promovem a violência contra camponeses e suas organizações e movimentos, provocam o desemprego, produzem um padrão de alimentos ultraprocessados com veneno, destroem os ecossistemas e biodiversidade etc.
De um outro lado, temos os camponeses agricultores familiares que produzem alimentos saudáveis, num sistema de agroecologia, que carecem de políticas públicas de infraestrutura e comercialização da produção. Produzem em regime familiar, onde todos participam e ainda lutam por uma reforma agrária popular, massiva, que associe o acesso à terra às políticas estruturantes e sociais.
CR: De que forma o Serviço Social está inserido nesta questão?
IB: A questão agrária tem sido uma área de estudo e atuação profissional. Neste sentido, é inegável reconhecer um conjunto de desigualdades presentes no meio rural brasileiro, oriundas da formação sócio-histórica. As pesquisas que vêm sendo realizadas no âmbito da formação profissional sobre Serviço Social e Questão Agrária têm sido fundamentais para superar a fragmentação do conhecimento e a dicotomia urbana e rural na análise da realidade brasileira. Desvelar a questão agrária e suas expressões sócio-históricas é imprimir o aprofundamento da questão social, em sua totalidade, particularidades e singularidades, como objeto da formação e do fazer profissional.
Os esforços empreendidos, especialmente nas últimas décadas, por diversos grupos de pesquisa sobre a questão agrária expressam o compromisso ético-político de diversos profissionais, em ampla articulação e sintonia com o projeto profissional.
Desta forma, é inegável reconhecer a questão agrária como campo sócio-ocupacional, em articulação com diversas políticas: saúde, assistência, previdência, sócio-jurídico. Além disso, o projeto profissional e o projeto societário passam pela defesa da Reforma Agrária Popular e Massiva e uma vida digna para as populações camponesas.
CR: Que análise você faz da questão neste contexto de pandemia?
IB: Quero ressaltar dois aspectos importantes deste tempo de isolamento devido à pandemia da COVID-19. O primeiro é a solidariedade desencadeada pelos movimentos sociais do campo, especialmente o MST. São ações de doação de produtos da Reforma Agrária vindos dos acampamentos e assentamentos em todos os estados, doações de alimentos e materiais de higiene e arrecadação financeira da sociedade civil. Estes produtos são doados, em forma de cestas básicas, para famílias das periferias da cidade e, em forma de marmitas diárias, para a população em situação de rua.
Além disso, temos as experiências de formação dos agentes populares de saúde que atuam nas periferias urbanas, orientando quanto aos cuidados e prevenção da COVID-19, distribuindo máscaras de tecido reutilizáveis para a população de baixa renda que não pode comprar e realizando a organização popular para a luta por direitos.
Vale destacar que o Setor de Gênero do MST vem desenvolvendo a Campanha MULHERES SEM TERRA, CONTRA OS VÍRUS E AS VIOLÊNCIAS. A necessidade de ficar em casa, neste momento, deveria ser uma prática para proteger e salvar vidas. Mas sabemos que para uma grande parte das mulheres e crianças o lar não é espaço de segurança. Em muitos lares, se enfrenta o desafio de sobreviver a agressões verbais e físicas.
A crise aprofundada pela pandemia coloca o desafio para a sociedade da produção de alimentos com base na agroecologia, no sentido da qualidade de vida, do fortalecimento da resistência e imunidade do corpo humano. Assim, as futuras gerações terão um novo modelo de produção agrícola: sem venenos, sem insumos químicos, que garanta a preservação do planeta.
O segundo aspecto é a luta dos movimentos sociais do campo por uma política de auxilio emergencial para a agricultura familiar, negado pelo Governo Federal. Trata-se da negligência do Estado Brasileiro, representado pelo grupo que está no poder e na figura do Presidente da República. É absurdo negar a existência da pandemia e minimizá-la a ponto de chamá-la de “gripezinha”. No campo, tem se intensificado a ação dos grupos hegemônicos do capital financeiro se apropriando da terra e dos recursos naturais. Exemplo disto é a destruição de parte da Amazônia e Pantanal, pelas queimadas criminosas realizadas por madeireiros e grileiros, associados a grandes grupos econômicos.
Nas palavras de João Pedro Stédile, “a pandemia do coronavírus é a expressão mais trágica da etapa atual do capitalismo e da crise civilizatória que vivemos. Primeiro, porque há muitos estudos científicos demonstrando que a eclosão de diversos novos vírus, antes desconhecidos, é parte da consequência de termos desequilibrado as forças da natureza, com o modelo de produção agrícola industrial em alta escala. A maioria dos novos vírus tem se propagado através da criação em grandes escalas de animais, aves, suínos, bovinos etc. Segundo que, diante da eclosão de crises como esta, fica evidenciada a importância de nossa tese de que devemos defender a soberania alimentar. Ou seja, cada povo, em cada região, precisa ter autonomia da produção de seus alimentos. O comércio global de commodities agrícolas fracassou.” (Jornal Brasil de Fato, março/2020)
Dessa forma, a realização da Reforma Agrária ampla e radical é uma das respostas contra as atuais crises mundiais: crise política, crise ambiental, crise ideológica, crise social, crise econômica e crise estrutural de acumulação capitalista, que ameaça a existência humana e a própria vida do planeta.
CR: Quando e como começou a sua aproximação com a temática?
IB: Meus primeiros contatos com a questão agrária brasileira foram na juventude, quando participava da Pastoral de Juventude do Meio Popular. Naquela época, comecei a estudar a realidade brasileira e do Nordeste e entender que havia um processo de desigualdade social e de concentração fundiária muito profundo, que impediam a juventude rural de ter uma vida digna. Percebi, nas ações com companheiras/os da PJMP do campo e da cidade, que só a luta muda nossa vida.
Ao ingressar no Curso de Serviço Social na UFRN, a Profa. Dra. Severina Garcia se transformou minha maior referência. Ela me colocou na trilha dos estudos e pesquisas sobre a questão agrária e isso foi determinante na minha formação. Fiz estágio curricular obrigatório no Serviço de Assistência Rural – SAR, da Arquidiocese de Natal, onde atuei no Sindicato de Trabalhadores Rurais de Touros, tendo contato direto com as lutas por terra na região do Mato Grande e com os movimentos sociais do campo, especialmente o MST.
Após a graduação em Serviço Social, trabalhei 23 anos com movimentos sociais do campo, através do Serviço de Assistência Rural, e posteriormente na ONG Centro de Educação e Assessoria Herbert de Souza, atuando diretamente com conflitos agrários, assalariamento rural na área da cana (região Agreste) e da fruticultura irrigada (região Oeste), assentamentos rurais e comunidades tradicionais e litorâneas.
Na docência desde 2007, continuo meu compromisso com a Reforma Agrária Popular, através do ensino, pesquisa e extensão. Entre os anos de 2014 e 2019, coordenei o Curso de Licenciatura em Ciências Sociais, pelo Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária, parceria entre UFRN/INCRA/MST, no qual foram formados 49 jovens rurais. Todas as pesquisas são voltadas para problemáticas que envolvem a questão agrária brasileira, assim como a formação no mestrado e doutorado.